João Perry: "Trabalhar com bons atores é fantástico, é um jogo de bola"
O teatro foi uma fatalidade, foi um prazer, foi uma coisa que apareceu? Podia ter sido outra vida se não tivesse começado de pequenino?
Ah! Certamente. Podia ser uma vida diferente. Fatalidade não acho que tivesse sido.
Para nós, público, foi ótimo.
Não sei se foi. Para mim, foi uma teimosia. Foi a maneira mais fácil de ganhar dinheiro, porque precisava. Comecei a trabalhar muito cedo, aos 12 anos. Pagavam-me quase melhor do que agora, porque ganhava 50 escudos por dia, 1500 escudos ao fim do mês, não tinha praticamente descontos nenhuns, a não ser para a Caixa. Em vão, porque não foi entregue. O Teatro Dona Maria não era do Estado, era uma concessão. A Caixa cometeu o disparate de não levar em conta o que estava a acontecer. "Mas tenho aqui a prova que fiz essa peça e tal." "Não há nenhum dinheiro dessa altura."
O que é fazia ao dinheiro?
Eu tinha ficado órfão de pai aos 9 anos - isto parece uma história italiana - e a minha mãe teve de trabalhar, o que, para ela, não era muito invulgar porque trabalhava obsessivamente. Tinha um ateliê de costura. Ela adorava dirigir pessoas e nada melhor do que ter pessoas a quem dizer "faz isto", "faz aquilo", "faz aqueloutro", "não está bem", "não está bem", "não está bem". Essas pessoas são um bocado complicadas no quotidiano. Para mim era um descanso a minha mãe trabalhar tanto, não me corrigia tantas vezes.
Começou então a ser ator aos 12 anos?
Comecei a trabalhar acidentalmente, por convite da Amélia Rey Colaço. Gostei da sensação e gostei de que tenham gostado. Nunca tinha querido ser do espetáculo, nunca tinha brincado aos teatros, nunca tinha dito poesia, nem em família nem em festas. Tinha imensa vergonha, imensa inibição, e achava chato tudo o que via dos outros, incómodo. Recusava-me a ler em voz alta, no liceu. Para mim, o espetáculo envolvia muitas coisas: a luz, o palco, as cadeiras, o teatro. Era uma coisa mais profissional, mais ritualizada do que uma nota à margem de uma página. Era desse aparato que eu gostava, no final das contas, e dos ensaios, da confraternização. Era uma família suposta, uma continuidade do que tinha tido. O meu pai era ator e levava-me para o teatro, largava-me lá. Eu passava o dia a perguntar porquê, o quê, onde é que está, e o que é que faz, o que é que diz. "Está calado." "Mas eu quero saber. Para que é que põe isso - o rímel - nos olhos? E não lhe dói? E depois tira? E os seus filhos, o que é que dizem quando a veem assim?" As pessoas da profissão do meu pai faziam umas coisas estranhas. Podiam morrer e passados minutos já estavam no camarim. "Vai morrer agora?" E eu ia lá fora ver morrer, depois voltava e a pessoa entrava e... já brincou! Para mim, era a possibilidade de brincar a sério.
Mas não queria fazer aquilo, brincar como eles?
Não, só queria vê-los e perguntar. Nunca tentei vestir roupas nem pôr coisas na cara. Era alimentado a bombons. Sentavam-me em cima dos caloríferos e davam-me bombons para eu estar quieto, porque aquilo era muito alto e eu não podia descer. Havia partes que não me deixavam ver nas peças. O ponto é que me deixava ver, ficava naquele buraco no meio da cena, e eu tinha de me portar bem, porque aquilo era cheio de botões à volta. Não me podia mexer. E só via pés a passar de um lado para o outro. Não podia perguntar nada, tinha de estar caladinho. Mas eu gostava. No espetáculo, sempre gostei de bisbilhotar, ver como se faz, perguntar aos maquinistas como prendiam a corda lá em cima. Fazia-me uma confusão enorme como é que os cenários subiam e ficavam pendurados, não caíam e não apareciam. "E depois a corda não se parte?" Nunca fiz psicanálise mas era capaz de ser revelador isto de querer saber onde ficam todas as portas antes de entrar num corredor, saber como é que se sai.
Como foi isso de passar para o palco?
Ao princípio, foi muito entusiasmante. Aos 17, fui para a companhia do Vasco Santana e depois mudei de companhia outra vez. Era conforme iam aparecendo possibilidades de fazer isto e aquilo, que outras pessoas não faziam. Nessa altura não havia grande competição. A minha geração viveu uma época mais facilitada do que atualmente, éramos quatro ou cinco. As escolhas recaíam nos que estavam a ter mais visibilidade. Nunca tive grande notoriedade, receava falar para a imprensa e tentava não falar de mim mas sim pela personagem que estava a fazer. Um ator não é conhecido, só as personagens que ele faz. Quem é aquela pessoa, porque é que faz aquilo, porque é que tem aquela leitura do texto, isso não se percebe.
E o João Perry percebe?
Agora pretendo perceber mais do que no passado, tenho mais a noção do que é a existência e o que se repete. Nunca somos muito originais, voltamos a fazer tudo outra vez, de uma maneira mais depurada, mas volta-se sempre ao mesmo problema.
Imagino que os primeiros papéis foram feitos de forma intuitiva. A aprendizagem foi sendo feita no palco?
Como um marceneiro a fazer um banco e com pessoas à volta. As pessoas eram dirigidas, não davam muito por isso, porque não havia uma metodologia identificável e organizada, mas havia um método para levar aquela criatura a fazer coisas que serviam a peça. O Robles Monteiro, a Amélia, o Pedro Lemos, todos dirigiam. Essa direção pode ser tida hoje como superficial, porque o essencial era não deixar cair os finais. Parece uma coisa mais para a advocacia do que para um ator... E não se sentar assim, sentar-se assado, não olhar para os degraus, ter a noção do espaço. Aprendizagens comportamentais para uma arquitetura estabelecida. Onde cabes, o que mostras, para quem mostras a grandeza do que mostras. Um teatro pequeno não tem o mesmo tipo de atuação que um teatro grande. Fazia-me sempre imensa impressão, quando íamos em tournées, quando as cenas que conhecia com fundo passavam a ser todas longitudinais. De repente, parecia cinemascope e era esquisitíssimo. Eu achava aquilo uma infração ao objeto original e não tinha habilidade suficiente para perceber que estava dentro de um jogo de faz-de-conta que é um compromisso entre nós e o público. É um faz-de-conta que o público, depois, vai tomando a sério. E um faz-de-conta nosso também.
O ator entra no faz-de-conta, torna-se aquilo?
Eu acabo sempre por ser absorvido pela personagem, pelo que penso dela, se a personagem é isto ou aquilo ou se está a pensar isto ou aquilo, porque me fundamento só no texto. O que o texto diz dá-me para ver a minha personagem, a minha relação com os outros, o que eu pretendo comunicar e qual é o propósito a atingir. Para mim, é uma coisa mais gratificante, não é racional. Há uma parte racional que desaparece de vez em quando.
Há muitos anos que não me acontece, mas houve alturas em que não sabia bem o que estava a fazer. Era como se a personagem se soltasse de mim e eu a sobrevoasse, nunca perdendo o controlo. Estava para lá de. E, quando saía, era como se saísse de qualquer coisa esquisita. Um dia, perguntei à Eunice: "Nunca te acontece ficares assim como uma coisa entre águas? E aquilo dar-te prazer mas não conseguires lá voltar?" Na última vez que me lembro, foi um acidente que provocou isso. Eu deixei de ter vigilância sobre o que estava a fazer e os pilotos automáticos começaram a funcionar e, de repente, eu, quando acordei, havia um espaço de tempo que... "O que é que eu terei feito!?" "O que é que terá acontecido?"
À Eunice também acontecia?
Sim. Mas ela falava de sobrevoar, dizia que via uma imagem. Em cinema, acho que só vi isso no Marlon Brando. É uma coisa indecifrável. Uma pessoa olha e não percebe onde começa o fio. É um novelo onde não se percebe se nós estamos a enfatuar, se é a imagem mítica se é a voz, se é ele que pensa naquilo. É extraordinário como consegue imprimir uma densidade interrogativa, para nós, como imagem. Nós somos câmaras, todos nós, com capacidades diferentes de visão. Mas, nele, é extraordinário. Há vário atores assim, felizmente.
Isso só acontece com boas personagens e textos bons?
Quando os textos têm conteúdo. Se um texto é banal é muito difícil. Não tem muito onde lavrar. Tem muita areia, muita pedra, não dá para pôr nada. Consegues inventar e sobreviver mas não te dá prazer repetir. Às vezes descobrem-se imensas coisas que a primeira leitura não nos deu. Estivemos ali a mastigar a pastilha elástica e nunca vimos.
Portanto, é outra peça.
É uma personagem mais enriquecida ou mais empobrecida, depende da capacidade do intérprete de fazer transparecer o que, teoricamente, pensa que aconteceu. Porque pode não ter capacidade, ser tão inibidor o que estabeleceu antes que não consegue passar daquilo para outra. O texto é um bloqueio, é difícil de aprender. Aprende-se com uma série de âncoras para se ter uma sequência, não ser preciso estar sempre a esforçar-se, ele aparecer naturalmente.
Fez algumas encenações, mas não muitas. Porquê?
Quando enceno, tenho canhenhos de notas que os desgraçados dos assistentes passam. E aperto os atores, e eles já sabem que eu o faço porque sou reincidente. Faço aquela coisa esfinctérica de querer todos os cantinhos da casa sem pó. E depois, quando o espetáculo estreia, os encenadores são deitados para um afastamento de ilhéus.
E sofre com isso?
Horrivelmente. O barco partiu. Vou lá de vez em quando, não quero chatear, sei como é, sei o outro lado da coisa, sei que as pessoas têm necessidade de respirar. Se for muito antagónico com o que eu penso, digo-o de uma forma não conflitual. E não me apeio até conseguir aquilo que quero e depois vou-me embora outra vez. Não gosto de ser um cão vigilante.
Só acompanha até à estreia?
Depois da estreia ainda vejo várias vezes, corre-se o risco de tirar coisas. O último espetáculo que encenei é uma coisa histórica porque foi há tantos anos. Nunca mais fiz nada, pus-me de castigo. Foi o Sonho de Uma Noite de Verão. Estreámos nem sei como, porque a disquete da luz desapareceu a dois dias da estreia, um ator teve uma distensão muscular e teve de ser substituído, aconteceu tudo. Num espetáculo, o avião parte mesmo naquele dia e voltamos a carregar aquela massa de atores no dia seguinte. Estranhamente, a peça foi um êxito, de tal maneira que eu quando fui à Sociedade Portuguesa de Autores receber os meus direitos nem os quis receber todos porque pensei que estavam enganados. Esteve esgotado do primeiro ao último dia a preços módicos, no Teatro da Trindade. O espetáculo tinha montes de coisas de que eu não gostava nada. Não tinha podido apurar o cozinhado, vai para a mesa porque eles estão com fome. Devia ter feito finca-pé e não deixar que estreasse, não tive lata para isso. E então pus-me de castigo. Se critico os outros também tenho de me criticar a mim.
Às vezes não lhe apetece voltar a encenar?
Sim, mas tenho sido salvaguardado desse apetecimento por não haver dinheiro para a farinha, nem para a nata, nem para a gamela. Não há dinheiro para nada. Acho que tenho a responsabilidade para com os meus colegas, na minha função de encenador, de lhes proporcionar o que eu gostaria de ter: aulas de manhã, de voz, de físico, de pôr o físico à prova, fazer ginástica, sair do quotidiano, das obrigações de casa, da família, das crianças, e entrar numa coisa que é aquela nova família, o espetáculo, o que se vai pôr em cena. Mas para isso é preciso pagar mais do que vulgarmente se paga, para as pessoas poderem fazer só aquilo, não fazerem televisão. Lá fora é normal aquilo que cá chamam de luxo. Coach para voz, coach para físico. Faz parte de nós sabermos o que somos uns com os outros, sabermos desinibir-nos no tato, no olhar, no cheiro. Sermos um grupo momentâneo. Isso transparece no palco, sem sombra de dúvida.
Teve essa experiência quando esteve nos Estados Unidos?
Fui em 1971, aos 31 anos. Fui escolhido por uma senhora que andava a viajar na Europa a ver atores jovens que quisessem ir para lá. Foi numa época em que o Peter Brook reunia atores daqui e dacolá. E havia outras pessoas a fazer repescagem de atores que quisessem fazer trabalho de pesquisa. Fui trabalhar com professores, aprender técnicas que tinha visto aqui em Portugal trazidas por atores ingleses que davam aulas no Conservatório e que vinham do Peter Brook. O que me interessava era uma prática mais quotidiana e intensa. A bolsa era de um ano, tinha de me despachar a aprender.
Foi um bónus, não? Nunca tinha tido bónus na vida?
Não. Nem acreditei. Pensei que ela estava a engatar-me. Ela foi ao teatro, deixou-me uns papéis para eu ler e responder depois. E eu nem queria ler aquilo. Tinha acabado de fazer uma peça, estava ainda naquela coisa de desbobinar a energia que tinha a mais com a Glicínia - estávamos a falar mal de alguém, com certeza, era o habitual. Mostrei aquilo ao Alain Oulman e ele disse que era ótimo."O que é que eu faço? Se aceito, o que é que me acontece?" "Vais para lá, durante um ano." "Em Nova Iorque!?"
Já tinha estado em Nova Iorque antes?
Sim, já tinha estado. Quando soube o que eles me iam dar não acreditei. Eram 25 contos por dia, uma coisa astronómica. Ainda pedi uma bolsa à Gulbenkian, porque tinha de deixar cá tudo pago: as casas, a minha e a da minha mãe, a vida da minha mãe, todas as obrigações que tinha. E fui. Tinha lá amigos completamente malucos, fizeram-me uma festa à chegada. Quando fui para as aulas, fiquei desanimadíssimo porque não sabia nada, não era capaz de fazer nada do que eles faziam. Ficava extasiado."Meu Deus! Onde é que eu me vim meter." Eu, ali, era mais uma pessoa. Essa parte era reconfortante, porque ser anónimo é fantástico, podes fazer todas as asneiras que ninguém traça a vermelho por baixo. Trabalhei imenso.
Ao fim de quanto tempo já fazia parte daquilo?
Quatro meses, para aí. Trabalhávamos desde as nove e meia da manhã até às seis da tarde, seguido. Era tudo tão abrupto e físico e violento que tinha mesmo de estar apto. Foi uma estada muito boa para o meu amadurecimento pessoal. Foi muito exaustivo e muito interrogativo. Depois fui melhorando, digamos assim. Comecei a ver pessoas que saíam para o êxito e isso desmoralizou--me um bocadinho. O que, para eles, significava independência era fazerem televisão. Nunca mais os vi, nem em séries. A única pessoa de que me lembro desse tempo é o Nick Nolte.
O Nick Nolte andava na mesma escola?
O Nick Nolte tinha feito de manequim e estava arredado de qualquer ideia do que fosse representar. Nunca mais vi aquelas pessoas, nunca mais falámos. É uma coisa de mudar de peça, mudar de elenco, mudar de sítio.
Foi sempre assim na vida?
Sim. Sempre.
Mas tem amigos...
Amigos, só escolhidos. Assim uma coisa de quase batíscafo, pessoas que resistem a qualquer tempestade, com quem se pode estar em desacordo, com quem uma pessoa se pode zangar no entendimento.
Como o pintor Ângelo de Sousa?
Sim. Zangávamo-nos às vezes em conversa, porque não estávamos de acordo. Zangávamo-nos. Porque é que eu agora havia de mudar a minha maneira de pensar se achava que o outro devia pensar como eu? Ou que percebesse a maneira como eu pensava e as minhas justificações. É uma coisa dinâmica. Numa amizade, a bola não está sempre num dos lados. As zangas são elucidações.
Movimentou-se no teatro mas sempre com amizades noutros planos das artes. O Alain Oulman, o António Areal, o Ângelo de Sousa...
E o José Rodrigues, que também esteve no teatro, como cenógrafo. Eu não estive em faculdades, de maneira que preciso de formação dada pelas pessoas com quem lido. Se essas pessoas tiverem paciência para me aturar, porque continuo a perguntar sempre porquê e para quê.
Continua a ser assim?
Deve-se tentar perguntar. Porque é que a gente se há de sujeitar a alguma coisa? "Porque é assim." O que é que isso quer dizer? Porque é que havemos de admitir que é assim? Não pode ser o contrário? Ou não pode ser mais para a esquerda ou mais para a direita? Porque é que havemos de ter um sentido derrotista? É preciso saber jogar nas cedências, ver onde é que a coisa dá e depois, se se acredita muito naquilo que se perdeu, fazer perceber ao outro que se enganou. Os meus amigos são pessoas que não vejo durante muito tempo e continuamos a conversa noutro dia. Sabemos que estamos a navegar no mesmo rio mas não nos cruzamos muitas vezes. Ainda um destes dias aconteceu com o Pedro Calapez, esteve cá em casa e ficámos a falar horas seguidas.
Mais uma vez um homem das artes plásticas.
Sim, eu gosto imenso. Eu gostava de ter sido arquiteto, isso era o que eu gostava, sempre foi a minha ideia desde miúdo.
O que aconteceu?
Não tinha dinheiro para ser arquiteto. Não podia pagar os meus estudos e fazer teatro. Desenhava imensas casas, mas acho que era porque queria ter uma. Depois passei a fazer em volume, com madeira de balsa, para ver as escalas. Claro que as coisas eram coisas acima da minha capacidade económica.
Como entra na personagem? Fez tantas personagens, e nem estou agora a falar de novelas.
Mas a novela é um exercício fantástico. É a mesma coisa que uma pessoa que escreve para os jornais e de repente escreve um romance. São coisas que a gente deita fora, mas estamos a trabalhar. Tenho aprendido imenso com o erro, o meu e o dos outros. No erro vemos mais claramente o que não se quer fazer. Nas coisas muito boas, ficamos seduzidos e somos levados atrás. É como um equilibrista a grande altura, parece fácil mas se tentarmos subir dez degraus vemos que o chão é cada vez mais longe e faz um medo horrível e é melhor descer. A facilidade é muito sedutora mas o erro visa-nos. Não gosto disto porquê? É a luz, é a pessoa, é o fato, é a posição, é a relação entre as pessoas, é a distribuição? A pessoa tenta escudar-se e, com o que há, fazer sobreviver o que se vê na cabeça: como é que a mão há de ficar para não parecer desenhada, para ser banal, credível? A televisão ensina-nos a proximidade e o desconforto de se estar íntimo com uma câmara em cima, com montes de pessoas a falar em cima de nós. As dobragens ensinam-nos que uma cara dentro de um plano, mesmo que seja um boneco, parece estar a expressar imensas coisas. Essas instâncias várias de leitura que um ator vai criando para fazer viver a personagem é que tornam possível acreditar que ela ande e que fale, dialogue com os outros, veja o que não existe, veja nos outros aquilo que não há. Porque se não é dialogável, se apanhas uma pessoa que representa uma cena no inverso daquilo que tu estás a querer emitir, não vais ter feedback.
E então?
Continuas em frente e vais para outra. Nada pior do que quando os atores começam a puxar os fatos. "Estás desconfortável? Isso é ótimo. É uma provocação. Se calhar isto não tem de estar direito, o fato está a ensinar-te uma outra coisa."
É preciso deixar-se ir?
Deixar-se ir, interrogar constantemente para encontrar a densidade, as ruturas das personagens, a rutura da lógica. Nós não fazemos movimentos lógicos a não ser quando estamos a gravar ou a filmar. Pões aqui uma pessoa para agarrar uma caneta, pões uma câmara e a pessoa olha para a câmara e vai apanhar a caneta, como se soubesse muito bem onde a caneta está. São coisas que uma pessoa faz de exibição para um visor. Para o público, se fizer uma coisa dessas fica tão postiço, tão falso. Para destruir estas arestas tens de manter o propósito de expressar aquilo que queres tornando-o quase banal.
Isso é o mais difícil?
É, porque é mais depurado, leva mais tempo, é preciso mais ensaios, mais atenção durante os ensaios. E tem de ter uma ideia em casa. Eu trabalho imenso em casa.
O que é trabalhar em casa?
É ouvir para o vazio e ver no vazio o que vai acontecer no dia, no ensaio. Vou levar isto para fazer, vou levar esta alteração para ver se cola, se é aceite. Eu gosto muito de pessoas que criticam o trabalho. Ensaios de corpo presente não me satisfazem. Quando estou em cena estou a ver como os colegas estão a representar e estou sempre naquela ansiedade. E depois penso: não interessa nada como o outro está a fazer, vou fazer o que eu quero, porque senão perco imenso tempo. A pôr as cadeiras no sítio, as toalhas, os copos, a limpar tudo e depois chega o almoço e já não me apetece comer.
Nesse sentido, trabalhar com atores bons...
Ah, isso é fantástico, é um jogo de bola. É fantástico, quando a bola está a circular.
Com quem lhe aconteceu isso?
Ultimamente aconteceu-me com a Rita Blanco, gosto imenso de trabalhar com ela, porque tem uma imaginação à solta. Tem estado a fazer personagens muito semelhantes, depois logo se verá o que vai fazer. Se tiver sorte e se for suficientemente fria para si própria, fará personagens contraditórias com o que fez antes. Nós às vezes temos muito medo de sair da própria caixa. Não só que não gostem de nós como não acreditem. Ou então já se tem muita idade e as pessoas dizem banzai dentro do avião, seja o que deus quiser. A mim aconteceu-me com esta última novela, o Coração d"Ouro [que se estreia em setembro na SIC]. Até canto e tudo. A Rita faz de empregada outra vez. Mas se lhe derem uma coisa oposta ela faz na calma. Na calma não, porque tem muitas dúvidas.
Com a Eunice Muñoz era assim?
Ah, com a Eunice! Tive a sorte de ter nascido numa geração de transição, com atores muito bons. Com alguns isso já nem é verificável porque isto do teatro é como os jornais, tal e qual, deita-se fora. Nem sequer temos uma biblioteca a que possamos recorrer.
Que transição foi essa?
Em termos de representação de teatro a coisa mudou muito, o cinema influenciou muito o teatro. Os atores da linha alemã representam mais explicitamente um compromisso entre o naturalismo e o realismo, se bem que isso sejam rótulos dificilmente verificáveis nas atuações. Quando vi pela primeira vez o Berliner Ensemble fazer a Mãe Coragem [de Brecht] não tinha percebido o que tinha lido da técnica de sensação e ainda fiquei mais confuso. Tive de ver o espetáculo duas vezes porque foi tão mágico para mim que perdi o sentido crítico e fiquei como uma criança que vê o circo pela primeira vez.
Mas isso é maravilhoso.
Pois é, mas eu quero ver como o motor se comporta, tenho de abrir o capô para ver, se não para mim não serve. É um rebuçado. Mas serve de pouco porque a tendência é logo "eu também quero fazer". Inveja. Aconteceu-me isso uma vez que vi o Jorge Silva Melo em França fazer uma peça... fiquei cheio de inveja, quero fazer tal e qual.
A pressão da popularidade por causa da televisão é pesada?
Muito, mas está a ser mais leve para mim percebi que é uma fatalidade incontornável. É assim, pronto, faz parte do cachet. A pessoa mostra--se, vai a casa das pessoas e portanto é um facto. E é simpático.